terça-feira, 15 de julho de 2008

Sobre baobás e flores

_ É verdade que os carneiros comem arbustos?
_ Sim. É verdade.
_ Ah! Que bom!
Não compreendi logo porque era tão importante que os carneiros comessem arbustos. Mas o principezinho acrescentou:
_ Por conseguinte eles comem baobás também?
Fiz notar ao principezinho que os baobás não são arbustos, mas árvores grandes como igrejas. E que mesmo que ele levasse consigo todo um rebanho de elefantes, eles não chegariam a dar cabo de um único baobá.
A idéia de um rebanho de elefantes fez rir ao principezinho:
_Seria preciso botar um por cima do outro...
Mas notou, em seguida, sabiamente:
_Os baobás, antes de crescer, são pequenos.
_É fato! Mas por que desejas tu que os carneiros comam os baobás pequenos?
_Por que haveria de ser? respondeu-me, como se se tratasse de uma evidência. E foi-me preciso um grande esforço de inteligência para compreender sozinho esse problema.
Com efeito, no planeta do principezinho havia, como em todos os outros planetas, ervas boas e más. Por conseguinte, sementes boas, de ervas boas; sementes más, de ervas más. Mas as sementes são invisíveis. Elas dormem no segredo da terra até que uma cisme despertar. Então ela espreguiça, e lança timidamente para o sol um inofensivo galhinho. Se é de roseira ou rabanete, podemos deixar que cresça à vontade. Mas quando se trata de uma planta ruim, é preciso arrancar logo, mal a tenhamos conhecido. Ora, havia sementes terríveis no planeta do principezinho: as sementes de baobá... O solo do planeta estava infestado. E um baobá, se a gente custa a descobri-lo, nunca mais se livra dele. Atravanca todo o planeta. Perfura-o com suas raízes. E se o planeta é pequeno e os baobás numerosos, o planeta acaba rachando.

Sempre houvera, no planeta do pequeno príncipe, flores muito simples, ornadas de uma só fileira de pétalas, e que não ocupavam lugar nem incomodavam ninguém. Apareciam certa manhã na relva, e já à tarde se extinguiam. Mas aquela brotara um dia de um grão trazido não se sabe de onde, e o principezinho vigiara de perto o pequeno broto, tão diferente dos outros. Podia ser uma nova espécie de baobá. Mas o arbusto logo parou de crescer, e começou então a preparar uma flor. O principezinho, que assitia à instalação de um enorme botão, bem sentiu que sairia dali uma aparição miraculosa; mas a flor não acabava mais de preparar-se, de preparar sua beleza, no seu verde quarto. Escolhia as cores com cuidado. Vestia-se lentamente, ajustava uma a uma suas pétalas. Não queria sair, como os cravos, amarrotada. No radioso esplendor da sua beleza é que ela queria aparecer. Ah! sim. Era vaidosa. Sua misteriosa toalete, portanto, durara dias e dias. E eis que uma bela manhã, justamente à hora do sol nascer, havia-se, afinal, mostrado.

_ Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla. Ele pensa: "Minha flor está lá, nalgum lugar..." Mas se o carneiro come a flor, é para ele, bruscamente, como se todas as estrelas se apagassem!
Ce n'était pas Albertine seule qui n'était qu'une succession de moments, c'était aussi moi-même.
Marcel Proust. Albertine disparue


está acontecendo. olha.
aconteceu. lembra.
Zakhor! e o que foi
ainda pode ser
em ti, na matéria, em nós.
sim, mas eu, a matéria, nós
ainda somos? ou já fomos
e não deixamos de ser
uma sucessão de momentos
e nada mais?
a suposta existência
acontece, aconteceu,
aconteci
e nada mais.


Reflexões sobre a distância

Evite-a!

sábado, 12 de julho de 2008

A escrita no corpo

No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.
Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.

Tu a levaste contigo.

Carlos Drumond de Andrade, Amor Natural.

A escrita do corpo

Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,
ou na banheira amar, de água vestidos,
amor escorregante, foge, prende-se,
torna a fugir, água nos olhos, bocas,
dança, navegação, mergulho, chuva,
essa espuma nos ventres, a brancura
triangular do sexo - é água, esperma,
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fonte?


Carlos Drummond de Andrade, Amor Natural
(quem melhor que ele traduziu as escritas do corpo?)

A leitura do corpo

Ao contrário da leitura das páginas escritas, a leitura que os amantes fazem de seus corpos (essa concentração de corpo e mente de que os amantes se valem para ir juntos para a cama) não é linear. Começa de um ponto qualquer, salta, repete-se, retrocede, insiste, ramifica-se em mensagens simultâneas e divergentes, torna a convergir, enfrenta momentos de tédio, vira a página, retoma o fio da meada, perde-se. Pode-se reconhecer aí uma direção, um percurso dirigido na medida em que tende a um clímax, e, em vista desse objetivo, preparam-se as fases rítmicas, as escansões, as recorrências de motivos. Mas será o clímax o verdadeiro alvo? Ou a corrida para esse fim não será antes contrariada por outro impulso que se esforça contra a corrente para retardar os instantes, para recuperar o tempo?

Caso se quisesse representar graficamente o conjunto, todo o episódio com seu ápice, seria necessário um modelo em três dimensões, talvez em quatro - não há modelo, nenhuma experiência é passível de repetir-se. É neste aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e espaço mensuráveis.


Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno

sábado, 5 de julho de 2008

Escrevo porque morro Nas palavras Sem precisar Matar-me a vida Escrevo porque sinto Nas imagens Sem poder Gozar a carne Escrevo porque finjo No fingimento Sem acreditar No que escrevo Sem precisar Matar-me a vida Sem poder Gozar a carne Sem acreditar no que escrevo porque morro porque sinto porque finjo Escrevo por que

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Entre Deus e o riso

Um dos fenômenos sociais mais interessantes é o riso. Muito pouco ou quase nada analisado pelas ciências sociais, ele poderia oferecer uma perspectiva privilegiada para uma auto-análise do cientista social. Explico.
Uma das causas primeiras do riso é o estranhamento. Não que o estranhamento esteja vinculado exclusivamente ao riso. A etnografia, ou ao menos a boa escrita etnográfica, é aquela capaz de tornar estranho aquilo que nos aparece como óbvio, como natural – e se o faz, normalmente, sem provocar o riso, isso se deve à etiqueta e à responsabilidade política que envolve tal tipo de escrita (e quem teve contato com antropólogos sabe o quanto o riso está na base de incríveis trabalhos). Contudo, para confundir responsabilidade política com o politicamente correto é um pulo. Qual a diferença entre os dois? Resumindo, diria que enquanto o politicamente correto anseia erigir-se como universal, uma espécie de Deus spinoziano que está em todo e em nenhum lugar, a responsabilidade política reconhece seu lugar como condição e limite de fala. Um bom exemplo disso é a comédia “Borat”. Seguindo uma estratégia retórica básica (o humor está no básico) de assumir a posição do outro, o protagonista explora e explode uma série de sensos comuns, inclusive aqueles que nos parecem mais sagrados e intocáveis – como os escatológicos (entenda-se, falo de merda mesmo, e não da salvação final). Com isso, ele não está falando dos distantes habitantes do Cazaquistão. Está falando dos seus e para os seus – que em parte somos nós. E é isso que causa a reação de repulsa. Ao passar o limite do que o cômico deveria ir para não ofender (um bom exemplo disso é a cena com o professor americano de piadas) ele está atingindo seu alcance sociológico. Quando digo ofender, certamente não estou me referindo aos habitantes do Cazaquistão, mas ao público. É este público que se sentiria ofendido caso um cazaquistanês defecasse em seu banheiro e viesse à sala de jantar com um saco de merda na mão perguntando o que deveria fazer com aquilo. O que significaria rir disso? Só há duas opções: ou estamos simplesmente denegrindo a cultura do outro (e, portanto, anulando o estranhamento), ou, ao contrário, estamos rindo da própria estranheza e reconhecendo o arbitrário que há na cultura de todos. Uma mesma arma pode servir para atcar e se defender. Não me parece, nesse sentido, que o riso que Borat causa seja ofensivo ao outro (até pode ser, mas não é a ele que se dirige, assim como Montaigne não se dirigia aos Tupinambás). Mas sua pretensa ofensividade ao público é significativa. O que esse público responde? Pergunta vã. Mas talvez um cientista social dissesse: “Não deveríamos rir dos outros, mas entender que são outros e que esse riso diz respeito a nossos preconceitos”. Sim. Mas de onde falaríamos senão a partir dos nossos preconceitos? Será que a ambição do cientista social (claro que falo aqui de uma posição de cientista social, e não de um universal) está em abolir a si mesmo, inclusive quando fala de si? Será que o riso, justamente como lembrança e aviso dessa impossibilidade, não tem sua legitimidade de ser, sem ser relegado ao politicamente incorreto? Não creio que rir é necessariamente ofender o outro, mas talvez acusar o riso seja o sinal de uma falta de modéstia. Como disse, acho que entre o politicamente correto e a responsabilidade política está o reconhecimento do limite da fala. É ela que nos permite rir e, ao mesmo tempo, respeitar de forma menos pretensiosa a diferença. Quem não foi a uma cultura diferente e não “pagou mico”, fazendo o outro rir, daria um péssimo etnógrafo. Em compensação, não me lembro de uma passagem da Bíblia onde Deus ri de sua criação.