Paulinho: Meu mundo é hoje...
Pessoa: Não, hoje nada; hoje não posso.
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Paulinho: não existe amanhã pra mim
Pessoa: Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Paulinho: Eu sou assim, assim morrerei um dia.
Pessoa: Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Paulinho: Não levarei arrependimentos nem o peso da hipocrisia.
Pessoa: Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Paulinho: Pois sei que além de flores, nada mais vai no caixão.
Pessoa: Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008
sábado, 2 de fevereiro de 2008
Sombras do passado


Uma das características que mais chama a atenção em Berlim é a quantidade de gruas e de construções em andamento pela cidade. Como amigas me informaram, costuma-se dizer que Berlim é um contínuo canteiro de obras ("Berlin ist eine Baustelle"). Isso é um sinal de riqueza, certamente. Mas não apenas. O que aquelas gruas estão fazendo, afinal de contas, não é somente levantar novos prédios: estão também reescrevendo a história. Para alguns a pena, para outros o martelo - como dizia Nietzsche. Quem já viu o filme de Win Wenders "Der Himmel über Berlin" certamente se lembrará da cena em que o narrador de histórias, após percorrer solitário a StadtBibliothek, se encaminha a um descampado onde, sentado numa poltrona velha, contempla uma paisagem de destroços. Ali, ele lamenta o fim de uma época, na qual a transmissão da experiência entre as gerações ainda era possível e da qual ele era, como lembra Benjamin, uma das figuras mais representativas. Pois bem, aquele descampado nada mais é que a Postdamer Platz. Palco da destruição da guerra e, mais recentemente, da dolorosa divisão da Alemanha, essa praça talvez possa ser encarada como uma síntese de Berlim, dos seus traumas e do esforço que essa cidade faz para trabalhar sua pesada memória.
Um caminhante distraído ou desavisado, ao percorrer aquelas ruas e prédios, provavelmente teria sua atenção toda voltada para a modernidade monumental das construções, sua luminosidade, seu desenho vertiginoso. Nada mais normal, afinal é esse um dos objetivos das construções. Contudo, passado alguns momentos e diminuído seu êxtase diante do esplendor da metrópole, é provável que ele percebesse os traços ali presentes de um passado outro. Estes traços, deixados ali artificial e propositadamente, fazem revelar todo o significado do conjunto da praça. Alguns blocos do Muro, tornados um pequeno museu a céu aberto, e uma suave linha demarcando o lugar por onde percorria, são o suficiente para trazer à memória do viajante toda uma série de eventos que marcaram os últimos sessenta anos. Então, após esse breve irromper da memória, o olhar do viajante é novamente atraído pelas luzes que se refletem nos prédios em torno. Ao contemplá-los, agora a partir da perspectiva criada por aqueles pequenos traços do passado, ele é levado a dar um sentido para a temporalidade recém vislumbrada. Do trauma do passado à perspectiva de um futuro aberto que se ergue diante dos olhos. No lugar do muro que marcava uma divisão, não só de Berlim, mas do mundo, reina agora a modernidade do Sony Center - símbolo da mundialização da comunicação "sem fronteiras". A mensagem é clara, não resta dúvidas de "quem ganhou" e qual o futuro do passado que está ordenando o sentido da história. Hoje pode-se observar os restos da DDR como objetos exóticos (e quase eróticos), ludicamente expostos num museu interativo. Com a unificação, consolidou-se a expectativa do "ein volk" e seu horizonte de futuro comum. Tudo claro, visível, tocante. Num breve passeio, o caminhante solitário pôde ler a história na espacialidade de uma praça e, no átrio do Sony Center, tomar um café enquanto observa a gigantesca tela de plasma divulgar uma campanha em nome do fim da fome mundial.
Fiquei imaginando o que o narrador de histórias pensaria hoje, ao sair da biblioteca e no lugar daquele descampado se deparar com a luminosidade dos novos edifícios. Primeiro, acredito, ele passaria em frente aos blocos do Muro museificado. Ali, não tiraria fotos. Seu olhar se dirigiria melancólico para o jovem que chegou há alguns instantes, fardado com um uniforme da DDR. De uma mala surrada, esse jovem retira pequenos objetos e alguns carimbos dos antigos vistos de passagem entre as duas Alemanhas. Com os carimbos em mãos e com sua farda impecável, expõe-se aos turistas que quiserem levar de lembrança essa pequena encenação do passado. Esse pseudo guarda de fronteira, logo reconheceria o narrador, nada mais é do que um desses tantos jovens emigrados das antigas cidades da DDR que vêm a Berlin para tentar a sorte. Desempregado, encontrou no mercado da memória uma brecha pra sobreviver.
Se os edifícios insistem em escrever a história, não são suficientes para congelar a memória e cicatrizar suas feridas. Estas feridas, inclusive, são prorrogadas por ações menos aparentes e vistosas que os prédios da Postdamer Platz. Exemplo disso é a distinção legal, ainda existente, entre quem era do Oeste e quem era do Leste. Legalmente os ex-cidadãos da DDR ganham salários menores que seus supostos compatriotas, na mesma medida em que os contribuintes da ex-Alemanha Ocidental pagam um imposto solidariedade com o objetivo de suprir as desigualdades econômicas. Ora, por essa lógica burra e perversa, mais do que uma união, o que ocorreu e ocorre é uma incorporação hierárquica - "sim, eles são parte de nós, mas são diferentes". Estas e outras marcas de distinção continuam a estruturar as práticas e os discursos. De um lado, os "ocidentais" se ressentem da obrigação de pagar pelo fracasso do sonho socialista e mesmo acusam os "orientais" pela forma como a incorporação se deu. De outro lado, os "orientais" sentem-se vitimizados e cobram uma reparação pelo "ocidente". O efeito óbvio disso é o aparecimento de discursos como o da nostalgia da DDR, nacionalistas e mesmo focos neo-nazistas que encontram na juventude desempregada das cidades interioranas da ex-DDR um campo fértil de expansão. E tudo isso é atualizado a cada dia, ali mesmo na Postdamer Platz - no jovem com sua farda, na moça que serve café, no executivo que ocupa as salas daqueles iluminados edifícios. Como cada uma dessas experiências se enquadra na memória pública exposta nas praças e museus? Talvez fosse essa a pergunta do narrador de histórias. E não é por acaso que os narradores de histórias alemães, hoje, voltam-se cada vez mais sobre si mesmos, na tentativa de encontrar formas que possam dar conta dessas longas e pesadas sombras do passado.
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