sábado, 8 de novembro de 2008

Dicionário de idéias feitas e refeitas

Rio de Janeiro: ponto no horizonte onde o inferno e o paraíso parecem se encontrar. Parafraseando o Descartes lemininskiano: se esta cidade existe, o que sou eu??

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

para ler devagar, letra por letra

Se gritasse, quem das legiões dos anjos escutaria
o grito? E mesmo se, inesperadamente,
um deles me acolhesse no coração: sucumbiria à sua
existência mais forte! Pois o belo não é senão
o princípio do espanto que mal conseguimos suportar,
e ainda assim, o admiramos porque, sereno,
deixa de nos destruir. Todo anjo é espantoso.
E por isso me contenho e refreio o apelo
de um soluço obscuro. Então quem
nos poderia valer? Anjos não, homens não,
e os animais inventivos logo se apercebem
de que não nos sentimos muito em casa
no mundo das explicações. Resta-nos talvez
uma árvore na encosta, para vermos e revermos
todos os dias. Resta-nos e estrada de ontem
e o apelo mimado de um hábito
que por nós se afeiçoou, permaneceu e não foi embora.
E a noite, a noite, quando o vento cheio de espaços do
mundo
nos desgasta a face - para quem ela não saberia ser desejo
e suave decepção,
ela, cuja proximidade pesa sobre
o coração solitário! Será mais leve para os amantes?
Juntos, eles apenas encobrem um para o outro seu
destino.


Rainer Maria Rilke - Primeira elegia (início)
Tradução: Emmanuel Carneiro Leão
Ps: sim, isso está virando um blog de citações. Se queres algo novo, conferir "escritores", mais abaixo. Também é uma citação.

sábado, 11 de outubro de 2008

Adeus à Metafísica, segundo Mefistófeles

Von Sonn' und Welten weiss ich nichts zu sagen,
Ich sehe nur, wie sich die Menschen plagen.

(De mundos, sóis, não tenho nada o que dizer,
Só vejo como se atormenta o humano ser) - Tradução: Jenny Klabin

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

dicinário de idéias feitas e refeitas 2

Comunicação: “é exatamente como eu...”. Todo o mistério da popularidade é oferecer os ouvidos ao próximo. Vivemos na era da comunicação. Ver "escritores".


História
: é verdade que os egípcios...? Poesia ou ciência? Perguntas que devem ser feitas, mas não respondidas. Sempre dar uma breve exclamação diante de um historiador.

sobre a história

"O assassinato de Allende encobriu rapidamente a lembrança da invasão da Boêmia, efetuada pelos russos; o sangrento massacre de Blangladesh fez esquecer Allende; a guerra no deserto do Sinai cobriu com seu alarido as lamentações de Bangladesh; os massacres do Camboja fizeram esquecer o Sinai, e assim por diante, até o esquecimento completo de tudo por todos"
Milan Kundera, O livro do Riso e do Esquecimento.

notícia


Notícia:

O presidente da Associação Nacional de Cegos dos Estados Unidos, sediada em Baltimore, promoveu nesta sexta-feira, dia 3, uma série de protestos contra a estréia da versão cinematográfica do livro de José Saramago, “Ensaio sobre a cegueira”. De acordo com o presidente da referida associação, "O filme retrata cegos como monstros, e vejo isso como uma mentira". Fontes seguras afirmam que Saramago teria remendado: “Sim, devo concordar, é mentira. O livro é uma ficção, uma fábula. Monstros são todos, sem exceção. E não apenas os cegos.”

terça-feira, 15 de julho de 2008

Sobre baobás e flores

_ É verdade que os carneiros comem arbustos?
_ Sim. É verdade.
_ Ah! Que bom!
Não compreendi logo porque era tão importante que os carneiros comessem arbustos. Mas o principezinho acrescentou:
_ Por conseguinte eles comem baobás também?
Fiz notar ao principezinho que os baobás não são arbustos, mas árvores grandes como igrejas. E que mesmo que ele levasse consigo todo um rebanho de elefantes, eles não chegariam a dar cabo de um único baobá.
A idéia de um rebanho de elefantes fez rir ao principezinho:
_Seria preciso botar um por cima do outro...
Mas notou, em seguida, sabiamente:
_Os baobás, antes de crescer, são pequenos.
_É fato! Mas por que desejas tu que os carneiros comam os baobás pequenos?
_Por que haveria de ser? respondeu-me, como se se tratasse de uma evidência. E foi-me preciso um grande esforço de inteligência para compreender sozinho esse problema.
Com efeito, no planeta do principezinho havia, como em todos os outros planetas, ervas boas e más. Por conseguinte, sementes boas, de ervas boas; sementes más, de ervas más. Mas as sementes são invisíveis. Elas dormem no segredo da terra até que uma cisme despertar. Então ela espreguiça, e lança timidamente para o sol um inofensivo galhinho. Se é de roseira ou rabanete, podemos deixar que cresça à vontade. Mas quando se trata de uma planta ruim, é preciso arrancar logo, mal a tenhamos conhecido. Ora, havia sementes terríveis no planeta do principezinho: as sementes de baobá... O solo do planeta estava infestado. E um baobá, se a gente custa a descobri-lo, nunca mais se livra dele. Atravanca todo o planeta. Perfura-o com suas raízes. E se o planeta é pequeno e os baobás numerosos, o planeta acaba rachando.

Sempre houvera, no planeta do pequeno príncipe, flores muito simples, ornadas de uma só fileira de pétalas, e que não ocupavam lugar nem incomodavam ninguém. Apareciam certa manhã na relva, e já à tarde se extinguiam. Mas aquela brotara um dia de um grão trazido não se sabe de onde, e o principezinho vigiara de perto o pequeno broto, tão diferente dos outros. Podia ser uma nova espécie de baobá. Mas o arbusto logo parou de crescer, e começou então a preparar uma flor. O principezinho, que assitia à instalação de um enorme botão, bem sentiu que sairia dali uma aparição miraculosa; mas a flor não acabava mais de preparar-se, de preparar sua beleza, no seu verde quarto. Escolhia as cores com cuidado. Vestia-se lentamente, ajustava uma a uma suas pétalas. Não queria sair, como os cravos, amarrotada. No radioso esplendor da sua beleza é que ela queria aparecer. Ah! sim. Era vaidosa. Sua misteriosa toalete, portanto, durara dias e dias. E eis que uma bela manhã, justamente à hora do sol nascer, havia-se, afinal, mostrado.

_ Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla. Ele pensa: "Minha flor está lá, nalgum lugar..." Mas se o carneiro come a flor, é para ele, bruscamente, como se todas as estrelas se apagassem!
Ce n'était pas Albertine seule qui n'était qu'une succession de moments, c'était aussi moi-même.
Marcel Proust. Albertine disparue


está acontecendo. olha.
aconteceu. lembra.
Zakhor! e o que foi
ainda pode ser
em ti, na matéria, em nós.
sim, mas eu, a matéria, nós
ainda somos? ou já fomos
e não deixamos de ser
uma sucessão de momentos
e nada mais?
a suposta existência
acontece, aconteceu,
aconteci
e nada mais.


Reflexões sobre a distância

Evite-a!

sábado, 12 de julho de 2008

A escrita no corpo

No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.
Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.

Tu a levaste contigo.

Carlos Drumond de Andrade, Amor Natural.

A escrita do corpo

Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,
ou na banheira amar, de água vestidos,
amor escorregante, foge, prende-se,
torna a fugir, água nos olhos, bocas,
dança, navegação, mergulho, chuva,
essa espuma nos ventres, a brancura
triangular do sexo - é água, esperma,
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fonte?


Carlos Drummond de Andrade, Amor Natural
(quem melhor que ele traduziu as escritas do corpo?)

A leitura do corpo

Ao contrário da leitura das páginas escritas, a leitura que os amantes fazem de seus corpos (essa concentração de corpo e mente de que os amantes se valem para ir juntos para a cama) não é linear. Começa de um ponto qualquer, salta, repete-se, retrocede, insiste, ramifica-se em mensagens simultâneas e divergentes, torna a convergir, enfrenta momentos de tédio, vira a página, retoma o fio da meada, perde-se. Pode-se reconhecer aí uma direção, um percurso dirigido na medida em que tende a um clímax, e, em vista desse objetivo, preparam-se as fases rítmicas, as escansões, as recorrências de motivos. Mas será o clímax o verdadeiro alvo? Ou a corrida para esse fim não será antes contrariada por outro impulso que se esforça contra a corrente para retardar os instantes, para recuperar o tempo?

Caso se quisesse representar graficamente o conjunto, todo o episódio com seu ápice, seria necessário um modelo em três dimensões, talvez em quatro - não há modelo, nenhuma experiência é passível de repetir-se. É neste aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e espaço mensuráveis.


Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno

sábado, 5 de julho de 2008

Escrevo porque morro Nas palavras Sem precisar Matar-me a vida Escrevo porque sinto Nas imagens Sem poder Gozar a carne Escrevo porque finjo No fingimento Sem acreditar No que escrevo Sem precisar Matar-me a vida Sem poder Gozar a carne Sem acreditar no que escrevo porque morro porque sinto porque finjo Escrevo por que

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Entre Deus e o riso

Um dos fenômenos sociais mais interessantes é o riso. Muito pouco ou quase nada analisado pelas ciências sociais, ele poderia oferecer uma perspectiva privilegiada para uma auto-análise do cientista social. Explico.
Uma das causas primeiras do riso é o estranhamento. Não que o estranhamento esteja vinculado exclusivamente ao riso. A etnografia, ou ao menos a boa escrita etnográfica, é aquela capaz de tornar estranho aquilo que nos aparece como óbvio, como natural – e se o faz, normalmente, sem provocar o riso, isso se deve à etiqueta e à responsabilidade política que envolve tal tipo de escrita (e quem teve contato com antropólogos sabe o quanto o riso está na base de incríveis trabalhos). Contudo, para confundir responsabilidade política com o politicamente correto é um pulo. Qual a diferença entre os dois? Resumindo, diria que enquanto o politicamente correto anseia erigir-se como universal, uma espécie de Deus spinoziano que está em todo e em nenhum lugar, a responsabilidade política reconhece seu lugar como condição e limite de fala. Um bom exemplo disso é a comédia “Borat”. Seguindo uma estratégia retórica básica (o humor está no básico) de assumir a posição do outro, o protagonista explora e explode uma série de sensos comuns, inclusive aqueles que nos parecem mais sagrados e intocáveis – como os escatológicos (entenda-se, falo de merda mesmo, e não da salvação final). Com isso, ele não está falando dos distantes habitantes do Cazaquistão. Está falando dos seus e para os seus – que em parte somos nós. E é isso que causa a reação de repulsa. Ao passar o limite do que o cômico deveria ir para não ofender (um bom exemplo disso é a cena com o professor americano de piadas) ele está atingindo seu alcance sociológico. Quando digo ofender, certamente não estou me referindo aos habitantes do Cazaquistão, mas ao público. É este público que se sentiria ofendido caso um cazaquistanês defecasse em seu banheiro e viesse à sala de jantar com um saco de merda na mão perguntando o que deveria fazer com aquilo. O que significaria rir disso? Só há duas opções: ou estamos simplesmente denegrindo a cultura do outro (e, portanto, anulando o estranhamento), ou, ao contrário, estamos rindo da própria estranheza e reconhecendo o arbitrário que há na cultura de todos. Uma mesma arma pode servir para atcar e se defender. Não me parece, nesse sentido, que o riso que Borat causa seja ofensivo ao outro (até pode ser, mas não é a ele que se dirige, assim como Montaigne não se dirigia aos Tupinambás). Mas sua pretensa ofensividade ao público é significativa. O que esse público responde? Pergunta vã. Mas talvez um cientista social dissesse: “Não deveríamos rir dos outros, mas entender que são outros e que esse riso diz respeito a nossos preconceitos”. Sim. Mas de onde falaríamos senão a partir dos nossos preconceitos? Será que a ambição do cientista social (claro que falo aqui de uma posição de cientista social, e não de um universal) está em abolir a si mesmo, inclusive quando fala de si? Será que o riso, justamente como lembrança e aviso dessa impossibilidade, não tem sua legitimidade de ser, sem ser relegado ao politicamente incorreto? Não creio que rir é necessariamente ofender o outro, mas talvez acusar o riso seja o sinal de uma falta de modéstia. Como disse, acho que entre o politicamente correto e a responsabilidade política está o reconhecimento do limite da fala. É ela que nos permite rir e, ao mesmo tempo, respeitar de forma menos pretensiosa a diferença. Quem não foi a uma cultura diferente e não “pagou mico”, fazendo o outro rir, daria um péssimo etnógrafo. Em compensação, não me lembro de uma passagem da Bíblia onde Deus ri de sua criação.

sábado, 28 de junho de 2008

Thoughts of a dry brain in a dry season


After such knowledge, what forgiveness? Think now

History has many cunning passages, contrived corridors

And issues, deceives with whispering ambitions,

Guides us by vanities. Think now

She gives when our attention is distracted

And what she gives, gives with such supple confusions

That the giving famishes the craving. Gives too late

What’s not believed in, or if still believed,

In memory only, reconsidered passion. Gives too soon

Into weak hands, what’s thought can be dispensed with

Till the refusal propagates a fear. Think

Neither fear nor courage saves us. Unnatural vices

Are fathered by our heroism. Virtues

Are forced upon us by our impudent crimes.

These tears are shaken from the wrath-bearing tree.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Diálogo entre o fado e o samba: ou bricolage de uma noite etílica

Paulinho: Meu mundo é hoje...

Pessoa: Não, hoje nada; hoje não posso.
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...

Paulinho: não existe amanhã pra mim

Pessoa: Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...

Paulinho: Eu sou assim, assim morrerei um dia.

Pessoa: Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...


Paulinho: Não levarei arrependimentos nem o peso da hipocrisia.

Pessoa: Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Paulinho: Pois sei que além de flores, nada mais vai no caixão.

Pessoa: Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Sombras do passado













Uma das características que mais chama a atenção em Berlim é a quantidade de gruas e de construções em andamento pela cidade. Como amigas me informaram, costuma-se dizer que Berlim é um contínuo canteiro de obras ("Berlin ist eine Baustelle"). Isso é um sinal de riqueza, certamente. Mas não apenas. O que aquelas gruas estão fazendo, afinal de contas, não é somente levantar novos prédios: estão também reescrevendo a história. Para alguns a pena, para outros o martelo - como dizia Nietzsche. Quem já viu o filme de Win Wenders "Der Himmel über Berlin" certamente se lembrará da cena em que o narrador de histórias, após percorrer solitário a StadtBibliothek, se encaminha a um descampado onde, sentado numa poltrona velha, contempla uma paisagem de destroços. Ali, ele lamenta o fim de uma época, na qual a transmissão da experiência entre as gerações ainda era possível e da qual ele era, como lembra Benjamin, uma das figuras mais representativas. Pois bem, aquele descampado nada mais é que a Postdamer Platz. Palco da destruição da guerra e, mais recentemente, da dolorosa divisão da Alemanha, essa praça talvez possa ser encarada como uma síntese de Berlim, dos seus traumas e do esforço que essa cidade faz para trabalhar sua pesada memória.

Um caminhante distraído ou desavisado, ao percorrer aquelas ruas e prédios, provavelmente teria sua atenção toda voltada para a modernidade monumental das construções, sua luminosidade, seu desenho vertiginoso. Nada mais normal, afinal é esse um dos objetivos das construções. Contudo, passado alguns momentos e diminuído seu êxtase diante do esplendor da metrópole, é provável que ele percebesse os traços ali presentes de um passado outro. Estes traços, deixados ali artificial e propositadamente, fazem revelar todo o significado do conjunto da praça. Alguns blocos do Muro, tornados um pequeno museu a céu aberto, e uma suave linha demarcando o lugar por onde percorria, são o suficiente para trazer à memória do viajante toda uma série de eventos que marcaram os últimos sessenta anos. Então, após esse breve irromper da memória, o olhar do viajante é novamente atraído pelas luzes que se refletem nos prédios em torno. Ao contemplá-los, agora a partir da perspectiva criada por aqueles pequenos traços do passado, ele é levado a dar um sentido para a temporalidade recém vislumbrada. Do trauma do passado à perspectiva de um futuro aberto que se ergue diante dos olhos. No lugar do muro que marcava uma divisão, não só de Berlim, mas do mundo, reina agora a modernidade do Sony Center - símbolo da mundialização da comunicação "sem fronteiras". A mensagem é clara, não resta dúvidas de "quem ganhou" e qual o futuro do passado que está ordenando o sentido da história. Hoje pode-se observar os restos da DDR como objetos exóticos (e quase eróticos), ludicamente expostos num museu interativo. Com a unificação, consolidou-se a expectativa do "ein volk" e seu horizonte de futuro comum. Tudo claro, visível, tocante. Num breve passeio, o caminhante solitário pôde ler a história na espacialidade de uma praça e, no átrio do Sony Center, tomar um café enquanto observa a gigantesca tela de plasma divulgar uma campanha em nome do fim da fome mundial.

Fiquei imaginando o que o narrador de histórias pensaria hoje, ao sair da biblioteca e no lugar daquele descampado se deparar com a luminosidade dos novos edifícios. Primeiro, acredito, ele passaria em frente aos blocos do Muro museificado. Ali, não tiraria fotos. Seu olhar se dirigiria melancólico para o jovem que chegou há alguns instantes, fardado com um uniforme da DDR. De uma mala surrada, esse jovem retira pequenos objetos e alguns carimbos dos antigos vistos de passagem entre as duas Alemanhas. Com os carimbos em mãos e com sua farda impecável, expõe-se aos turistas que quiserem levar de lembrança essa pequena encenação do passado. Esse pseudo guarda de fronteira, logo reconheceria o narrador, nada mais é do que um desses tantos jovens emigrados das antigas cidades da DDR que vêm a Berlin para tentar a sorte. Desempregado, encontrou no mercado da memória uma brecha pra sobreviver.

Se os edifícios insistem em escrever a história, não são suficientes para congelar a memória e cicatrizar suas feridas. Estas feridas, inclusive, são prorrogadas por ações menos aparentes e vistosas que os prédios da Postdamer Platz. Exemplo disso é a distinção legal, ainda existente, entre quem era do Oeste e quem era do Leste. Legalmente os ex-cidadãos da DDR ganham salários menores que seus supostos compatriotas, na mesma medida em que os contribuintes da ex-Alemanha Ocidental pagam um imposto solidariedade com o objetivo de suprir as desigualdades econômicas. Ora, por essa lógica burra e perversa, mais do que uma união, o que ocorreu e ocorre é uma incorporação hierárquica - "sim, eles são parte de nós, mas são diferentes". Estas e outras marcas de distinção continuam a estruturar as práticas e os discursos. De um lado, os "ocidentais" se ressentem da obrigação de pagar pelo fracasso do sonho socialista e mesmo acusam os "orientais" pela forma como a incorporação se deu. De outro lado, os "orientais" sentem-se vitimizados e cobram uma reparação pelo "ocidente". O efeito óbvio disso é o aparecimento de discursos como o da nostalgia da DDR, nacionalistas e mesmo focos neo-nazistas que encontram na juventude desempregada das cidades interioranas da ex-DDR um campo fértil de expansão. E tudo isso é atualizado a cada dia, ali mesmo na Postdamer Platz - no jovem com sua farda, na moça que serve café, no executivo que ocupa as salas daqueles iluminados edifícios. Como cada uma dessas experiências se enquadra na memória pública exposta nas praças e museus? Talvez fosse essa a pergunta do narrador de histórias. E não é por acaso que os narradores de histórias alemães, hoje, voltam-se cada vez mais sobre si mesmos, na tentativa de encontrar formas que possam dar conta dessas longas e pesadas sombras do passado.