
Está estampado nos ônibus da cidade de Paris, nos corredores do metrô, em outdoors: "Le cheval, vous l'aimez comment?". Abaixo, duas opções (claro sinal de uma cultura democrática) são expostas, sendo que uma delas já vem assinalada. Compreensível, já que essa manifestação é produto de uma das partes da contenda. Mas o que interessa de fato é a colocação do problema: devemos ou não comer cavalos? Bem, eu sei que para um bárbaro sub-equatoriano isso pode parecer um pouco bizarro. A possibilidade de comer um animal pelo qual nutrimos tanto afeto tende a nos causar um certo repúdio. Deve-se ter em mente, contudo, que nós, como bárbaros, estamos ainda muito vinculados ao mundo natural. O que não acontece com os franceses, claro. Aqui os problemas da civilização se colocam da forma mais crua possível (com perdão do trocadilho). Deixem-me tentar explicar essa questão, como dizem os antropólogos, "do ponto de vista dos nativos".
Acontece que os franceses estão desesperados atrás de proteínas. Suas fontes protéicas caíram vertiginosamente nas últimas décadas, devido a um processo complexo que teve como resultado uma dependência quase total de importações provenientes do terceiro mundo. O problema é que a criação bovina no terceiro mundo também sofreu uma diminuição abrupta, sem contar as inúmeras doenças que, graças a um desleixo que lhes é próprio, assolaram esses infortunados países. Mas o que fazer? É essa a grande indagação das autoridades políticas francesas, dos sociólogos, dos jornalistas, das associações de terceira idade, dos veternos de guerra e dos motoristas de táxi (os quais, devo acrescentar, apesar de não serem muitos, são extremamente influentes). As mais diversas alternativas estão sendo discutidas. Não pensem que a sugestão de tornar os meigos cavalos mais uma especialidade da cozinha francesa é a única colocada. Os vegetarianos, por exemplo, afirmaram que a população poderia passar muito bem sem aquela bisteca suculenta, contentando-se apenas com o purê de batata. Por motivos de segurança pública, contudo, o governo achou prudente isolar esses radicais numa região do interior da França, antes que a multidão com abstinência de proteína os devorasse. Foi sugerido, igualmente, engrossar a mesa dos franceses com os pombos que infestam as grandes cidades. Com isso, não apenas se resolveria a grave questão alimentar, como também seria eliminada uma das maiores pragas urbanas. Essa opção foi logo refutada, não tanto pelas possíveis doenças que esse alimento poderia causar, mas antes pelo fato de que seria apenas uma medida paleativa. O extermínio de todos os pombos da França não garantiria uma reposição de proteínas senão por alguns poucos meses. É nesse momento que a idéia de comer cavalos apareceu. De imediato, para evitar as especulações financeiras, foram suspensos todos os leilões e proibida qualquer comercialização de cavalos. Todos ficariam a partir de então sob a tutela jurídica do Estado, até que essa opção fosse analisada e discutida pelos cidadãos. Perceba, leitor, como nosso olhar estrangeiro está sujeito a equívocos. Aquele cartaz em defesa de uma relação de amizade com os eqüinos não é produto de alguma comunidade de protetores dos animais. Longe disso. Representa apenas uma medida que os criadores de cavalos e os organizadores dos badalados leilões parisienses acharam necessário tomar antes que seu modo de vida desaparecesse em meio a essa crise.
Felizmente, para os organizadores de leilões e para nós, emotivos bárbaros sub-equatorianos, esse grande problema está em vias de ser resolvido definitivamente. Depois de enviar uma comissão de eruditos e pesquisadores à Biblioteca Nacional da França, com a sagrada missão de vasculhar a memória dos povos em busca de alguma saída para esse dilema do presente, o governo francês vai anunciar em alguns dias as medidas que vão garantir aos famintos gauleses suas doses diárias de proteínas. Como estou freqüentando com alguma assiduidade essa biblioteca, pude travar relações com um desses eruditos e adianto, com exclusividade, qual a saída sabiamente escolhida para a situação. Ao se ocuparem da seção de literatura inglesa, os pesquisadores encontraram um panfleto escrito há quase trezentos anos pelo célebre Jonathan Swift. Bem, esse panfleto tem por título "Uma modesta proposta" e não deve ser desconhecido para quem já passou os olhos pela obra desse escritor irlandês. Acontece que o sentido original desse escrito acabou sendo deturpado, devido a um processo bastante comum causado pelos críticos literários. Se hoje ele é lido como um texto irônico, à época em que Swift o escreveu não poderia ser mais sério. Mas não convém ser severo com os críticos, afinal é só diante de uma situação tão grave como aquela a que se dirigia Swift que podemos, retrospectivamente, entender a gravidade e a genialidade de sua modesta proposta. E é inspirado nela que as autoridades francesas irão anunciar a nova fonte nacional de proteína: as crianças. Nem cavalos, nem pombos, mas crianças. Óbvio que não se trata de toda e qualquer criança. A civilidade dos franceses não chegaria ao ponto de devorar seus próprios filhos. Assim como na sugestão de Swift, unem-se aqui o útil e o agradável. É notoriamente sabido que uma das grandes mazelas atuais dos povos europeus está na massiva imigração, uma veradeira nova invasão bárbara. Ora, pra que sacrificar os dignos cavalos franceses se existe uma tão grande quantidade de árabes, turcos, africanos, e mesmo alguns latino-americanos, disponíveis para consumo? Não todos, deve-se ressaltar, apenas as crianças. Aqueles acima de vinte anos continuariam a levar sua vida normal, trabalhando nas portarias, recolhendo lixo, varrendo a rua. Apenas suas crias seriam confiscadas, havendo, ainda, uma compensação para que garantissem uma regularidade da procriação. Tudo resolvido. A imigração controlada e as barrigas saciadas. Não haverá mais o risco de encontrar no mercado um rosbife de cavalo. E já vislumbro a proliferação pela cidade de restaurantes especializados em vitela de turco, sopa de marroquino, tunisiano gratinado. Podem dormir tranquilos os bárbaros amantes de cavalos e os organizadores dos badalados leilões parisienses.
Aguardem para os próximos dias o pronunciamento de sua excelência, presidente da França, Nicolas Sarkozy.