quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Uma metáfora interessante


"Eu não nego que há assuntos mais recentes sobre os quais se pode escrever com mérito; e eu não critico ninguém por ter prazer em tal trabalho. Mas, agora, qual a acusação contra mim, se eu acho o antigo, como vinho envelhecido, mais próprio ao meu gosto? Eu admito, de imediato, que Orfeu não se dirigiu para o mundo dos mortos pelo amor a Euridice, como relatam os poetas, com um desejo mais forte que o meu em ir até o fim do mundo se, por acaso, houvesse lá alguma esperança de conseguir uma idéia desses homens antigos, os quais, já que não posso vê-los com meus olhos, o melhor que posso fazer é abraçá-los sinceramente com minha mente e imaginação".
Leonardo Bruni, Prefácio à Primeira Guerra Púnica (c. 1421)

O que nos leva ao mundo dos mortos senão, como Orfeu, o desejo? Essa associação de imagens operada por Bruni, entre o desejo de Orfeu por Eurídice e do historiador pelo passado, encerra as mais ricas conseqüências. Antes de tudo, por identificar essa pulsão primeira, quase carnal, anterior a qualquer racionalização, que nos liga a essa ausência que - na expressão exata - "desejamos possuir". Mas além disso, outras associações com o mito de Orfeu poderiam ser exploradas. Retringirei-me a apenas uma.
A jornada de Orfeu ao mundo dos mortos em busca do ser amado se deu pelo desejo de ver e de possuir. Ora, sabemos que, de fato, ele não apenas conseguiu atrasvessar o Aqueronte e adentrar no Hades, como também pôde conquistar o direito de trazer Eurídice de volta ao mundo dos vivos em carne e osso, onde poderia vê-la e possui-la. Sabemos igualmente, contudo, que ele perdeu sua amada para sempre ao não controlar seu desejo e voltar seus olhos para ela antes que tivessem saído do mundo dos mortos. Não sabemos se Eurídice realmente retornaria ou se o desejo de Orfeu era apenas um motivo de brincadeira dos Deuses, estando ele condenado, invariavelmente, a ficar separado de sua amada. O que importa, ao final, é que o mesmo motivo que o fez aventurar-se do "outro lado" foi a causa (ou a consciência) de sua perda definitiva. Ele queria (re)vê-la. Mas esse olhar, longe de trazer a posse, fez eterna a ausência. Se Orfeu tivesse lido Proust, ou ao menos soubesse, como Bruni, que não podemos ver os mortos com nossos próprios olhos, mas apenas abraçá-los com nossa mente e imaginação, talvez ele não passasse por uma experiência tão traumática e pudesse conviver, durante o resto de seus dias, com a imagem de Eurídice que sua lembrança lhe ofertasse. Portanto, se o historiador é um Orfeu em busca de sua Eurídice, ele pode, ou entregar-se a seu desejo cego e expor-se aos piores traumas, ou então sublimá-lo em um trabalho constante de construção de imagens que façam presente aquilo que, invariavelmente, não é mais.





terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Empanturrei-me de madeleines para ver se me causavam alguma experiência proustiana. Mas nada aconteceu, a não ser um enfastio.
Ainda estou a procurar o gosto de minhas memórias.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Notícias da civilização




Está estampado nos ônibus da cidade de Paris, nos corredores do metrô, em outdoors: "Le cheval, vous l'aimez comment?". Abaixo, duas opções (claro sinal de uma cultura democrática) são expostas, sendo que uma delas já vem assinalada. Compreensível, já que essa manifestação é produto de uma das partes da contenda. Mas o que interessa de fato é a colocação do problema: devemos ou não comer cavalos? Bem, eu sei que para um bárbaro sub-equatoriano isso pode parecer um pouco bizarro. A possibilidade de comer um animal pelo qual nutrimos tanto afeto tende a nos causar um certo repúdio. Deve-se ter em mente, contudo, que nós, como bárbaros, estamos ainda muito vinculados ao mundo natural. O que não acontece com os franceses, claro. Aqui os problemas da civilização se colocam da forma mais crua possível (com perdão do trocadilho). Deixem-me tentar explicar essa questão, como dizem os antropólogos, "do ponto de vista dos nativos".
Acontece que os franceses estão desesperados atrás de proteínas. Suas fontes protéicas caíram vertiginosamente nas últimas décadas, devido a um processo complexo que teve como resultado uma dependência quase total de importações provenientes do terceiro mundo. O problema é que a criação bovina no terceiro mundo também sofreu uma diminuição abrupta, sem contar as inúmeras doenças que, graças a um desleixo que lhes é próprio, assolaram esses infortunados países. Mas o que fazer? É essa a grande indagação das autoridades políticas francesas, dos sociólogos, dos jornalistas, das associações de terceira idade, dos veternos de guerra e dos motoristas de táxi (os quais, devo acrescentar, apesar de não serem muitos, são extremamente influentes). As mais diversas alternativas estão sendo discutidas. Não pensem que a sugestão de tornar os meigos cavalos mais uma especialidade da cozinha francesa é a única colocada. Os vegetarianos, por exemplo, afirmaram que a população poderia passar muito bem sem aquela bisteca suculenta, contentando-se apenas com o purê de batata. Por motivos de segurança pública, contudo, o governo achou prudente isolar esses radicais numa região do interior da França, antes que a multidão com abstinência de proteína os devorasse. Foi sugerido, igualmente, engrossar a mesa dos franceses com os pombos que infestam as grandes cidades. Com isso, não apenas se resolveria a grave questão alimentar, como também seria eliminada uma das maiores pragas urbanas. Essa opção foi logo refutada, não tanto pelas possíveis doenças que esse alimento poderia causar, mas antes pelo fato de que seria apenas uma medida paleativa. O extermínio de todos os pombos da França não garantiria uma reposição de proteínas senão por alguns poucos meses. É nesse momento que a idéia de comer cavalos apareceu. De imediato, para evitar as especulações financeiras, foram suspensos todos os leilões e proibida qualquer comercialização de cavalos. Todos ficariam a partir de então sob a tutela jurídica do Estado, até que essa opção fosse analisada e discutida pelos cidadãos. Perceba, leitor, como nosso olhar estrangeiro está sujeito a equívocos. Aquele cartaz em defesa de uma relação de amizade com os eqüinos não é produto de alguma comunidade de protetores dos animais. Longe disso. Representa apenas uma medida que os criadores de cavalos e os organizadores dos badalados leilões parisienses acharam necessário tomar antes que seu modo de vida desaparecesse em meio a essa crise.
Felizmente, para os organizadores de leilões e para nós, emotivos bárbaros sub-equatorianos, esse grande problema está em vias de ser resolvido definitivamente. Depois de enviar uma comissão de eruditos e pesquisadores à Biblioteca Nacional da França, com a sagrada missão de vasculhar a memória dos povos em busca de alguma saída para esse dilema do presente, o governo francês vai anunciar em alguns dias as medidas que vão garantir aos famintos gauleses suas doses diárias de proteínas. Como estou freqüentando com alguma assiduidade essa biblioteca, pude travar relações com um desses eruditos e adianto, com exclusividade, qual a saída sabiamente escolhida para a situação. Ao se ocuparem da seção de literatura inglesa, os pesquisadores encontraram um panfleto escrito há quase trezentos anos pelo célebre Jonathan Swift. Bem, esse panfleto tem por título "Uma modesta proposta" e não deve ser desconhecido para quem já passou os olhos pela obra desse escritor irlandês. Acontece que o sentido original desse escrito acabou sendo deturpado, devido a um processo bastante comum causado pelos críticos literários. Se hoje ele é lido como um texto irônico, à época em que Swift o escreveu não poderia ser mais sério. Mas não convém ser severo com os críticos, afinal é só diante de uma situação tão grave como aquela a que se dirigia Swift que podemos, retrospectivamente, entender a gravidade e a genialidade de sua modesta proposta. E é inspirado nela que as autoridades francesas irão anunciar a nova fonte nacional de proteína: as crianças. Nem cavalos, nem pombos, mas crianças. Óbvio que não se trata de toda e qualquer criança. A civilidade dos franceses não chegaria ao ponto de devorar seus próprios filhos. Assim como na sugestão de Swift, unem-se aqui o útil e o agradável. É notoriamente sabido que uma das grandes mazelas atuais dos povos europeus está na massiva imigração, uma veradeira nova invasão bárbara. Ora, pra que sacrificar os dignos cavalos franceses se existe uma tão grande quantidade de árabes, turcos, africanos, e mesmo alguns latino-americanos, disponíveis para consumo? Não todos, deve-se ressaltar, apenas as crianças. Aqueles acima de vinte anos continuariam a levar sua vida normal, trabalhando nas portarias, recolhendo lixo, varrendo a rua. Apenas suas crias seriam confiscadas, havendo, ainda, uma compensação para que garantissem uma regularidade da procriação. Tudo resolvido. A imigração controlada e as barrigas saciadas. Não haverá mais o risco de encontrar no mercado um rosbife de cavalo. E já vislumbro a proliferação pela cidade de restaurantes especializados em vitela de turco, sopa de marroquino, tunisiano gratinado. Podem dormir tranquilos os bárbaros amantes de cavalos e os organizadores dos badalados leilões parisienses.
Aguardem para os próximos dias o pronunciamento de sua excelência, presidente da França, Nicolas Sarkozy.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Flor do Atacama

“É que o Prefácio é a última coisa que se faz, ou que se escreve, e quem gasta cinco anos sucessivos a parafusar, a escrever, a solicitar, a esmiuçar e a desenterrar a vida alheia para compor uma história ou muitas histórias, acaba exausto de ânimo e de forças como eu, de tal sorte, que daria a minha Obra a todos os diabos só para não fazer um Prefácio, e ainda assim o Prefácio me persegue como um duende.”
“Sem embargo, não está o negócio em minhas mãos, porque há certas leis de etiqueta (e o Prefácio é uma etiqueta), a que é mister obedecer de grado ou por força: quem visse a obra, e depois do título a Introdução, e não visse o Prefácio, diria logo – esta obra está incompleta e não vale dois cominhos -, os subscritores a engeitariam, e os compradores a repudiariam com mais forte razão, porque a Obra não tinha Prefácio. Deus eterno!! Por que transes não tenho passado para fazer um Prefácio, e todavia não o comecei sequer! Quem me faz um Prefácio, quem me empresta um Prefácio, ainda que o devolva depois com uma Introdução de quebra! Se em lugar de Prefácio eu fizesse um Prólogo, ou um Preâmbulo, ou mesmo uma Prefação!"
“Debulhado em gotas de suor frio bati na testa de cansado, e logo me veio a idéia de copiar o meu Prospécto, e dá-lo de novo como Prefácio ou parte do Prólogo.”
Quem escreveu essas frases tão agudas? Baudelaire, Nietzsche, Breton, Leminski? Bem que poderia ser algum destes. Mas não, o autor dessas frases em nada se assemelha a essa lista de lunáticos geniais. Em primeiro lugar, era um general. O que já causa estranhamento. Além do mais, as obras que esse sujeito produziu foram condenadas, com alguma razão, ao esquecimento. Mas chega de suspense. O curioso autor dessas frases chamava-se Gen. José Ignácio de Abreu e Lima. Conhece? Não está perdendo muita coisa, devo admitir. Não é um autor que eu indicaria a amigos, a não ser que ele fosse um desses perturbados que gostam de ler historiografia do século XIX. Mas é justamente isso o que torna essas frases ainda mais deliciosas, elas aparecerem qual uma flor delicada em terreno tão árido. Não me estenderei. Só vim aqui resgatar essa preciosidade e compartilhá-la. Afinal, quem já teve a experiência de escrever um prafácio, qualquer que ele seja, certamente vai reconhecer-se nesses devaneios de Abreu e Lima.
Obs: o trecho em questão é (justamente) o prefácio de seu livro Sinopse ou dedução cronológica dos fatos mais notáveis da história do Brasil, publicado em 1845 pela Tipografia de Manuel Figueiroa de Faria.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Se

Funes, el memorioso, lembrava-se de tudo o que aconteceu. De tudo, enfatiza o narrador. Do que aconteceu, enfatizo eu. Pois imagine lembrar-se de tudo o que não aconteceu... Todas as artes da memória, dos gregos a Petrus Ramus, sequer seriam formuladas diante de tal ambição. Se é que podemos chamar isso de ambição, ou se seria melhor, como Borges, designar essa experiência fictícia como uma patologia causada por um acidente qualquer. Tanto faz. De qualquer forma, as conseqüências seriam assombrosas. Se o fato de nos recordarmos do que aconteceu já é motivo de tantas dores, arrependimentos, vergonha, melancolia, ressentimento, ódio, desprezo - e algumas alegrias, devo confessar - imagine, até onde sua imaginação for capaz, o que causaria ao espírito a imagem de todos esses possíveis, todos esses futuros do passado nos assombrando como uma miríade de fantasmas ao pé de nossa cama, disputando ferozmente a vez de puxar nosso cobertor enquanto dormimos. Sim, por mais infantil que pareça essa imagem, há nela uma verdade. Afinal, o que seriam todas essas ações não realizadas em nossa mente senão fantasmas? E que assombração maior elas poderiam nos causar a não ser nos tirar o sono, nos impedir de morrer momentaneamente em nosso leito, obrigando-nos a permanecer com os olhos estatelados, apontados para uma escuridão sem fim da qual ficaríamos a todo momento esperando o que não foi? Vislumbro um suicídio coletivo diante de tal hipótese. A morte representaria não apenas um fim do que foi e do que seria, mas igualmente da presença sufocante e aterrorizadora de tudo aquilo que poderia ter sido. (a continuar...)